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Soroca, A Vingança das Águas

Livro aborda a vida na Vila Madalena e no Bairro de Pinheiros em São Paulo no passado e no presente
  • Categoria: Literatura
  • Publicação: 17/01/2025 08:39
  • Autor: Bia Malamud



Soroca, a Vingança das Águas

Em 2016, a jornalista e escritora Angela Marsiaj, nascida em Porto Alegre e criada em São Paulo, descobriu que o Rio Verde corria canalizado pela Vila Madalena, bairro boêmio de São Paulo, e que chegou a se chamar Risca-Faca. Daí nasceu um conto, com briga de faca e o rio à superfície. Esse texto acabou se transformando no romance em dois tempos. Trabalho que demorou 8 anos.

Em Soroca, lançado em junho de 2024, observamos duas narrativas distintas de jovens de diferentes épocas enfrentando dilemas diversos. Soroca aborda dois tempos e duas narrativas diferentes nos Bairros de Pinheiros e Vila Madalena. Uma no século XVIII e outra atual com personagens distintos. Iacy, uma menina criada como homem para fugir dos malfeitos do avô Brontes no século XVIII. E Joana, que, em pleno século XXI vive o drama de não saber que é seu pai, o que provoca um afastamento de sua mãe.

Nesta entrevista à jornalista Bia Malamud, Marsiaj aborda aspectos desta obra instigante e reveladora.

Qual a origem da palavra Soroca?

O livro começa numa tempestade: o Rio Verde transborda, a água mina a terra, o asfalto cede e aparece uma cratera. Esse buraco existiu. Eu vi. Minha personagem podia cair naquela cratera.  Soroca, palavra de origem tupi (sorok) é o buraco aberto pela água, quando esta mina a terra. Pronto: tinha o título e o evento que dá início à narrativa atual.

Pelo livro nota-se que você tem uma ligação muito forte com o bairro de Pinheiros e a Vila Madalena. Conte um pouco sobre essa história.

Fiz o Ensino Médio lá perto. Adulta fui morar por ali, também. A briga de faca do passado é ambientada na curva do Rio Verde que passa dentro do Beco do Batman, um ponto hoje turístico. Na trama antiga, eu a chamei de Morcego. A curva é a única que sobrou do rio. Fiz a cena das lavadeiras no encontro das “pernas” do rio, que tinha duas nascentes e parecia um Y. Imaginei a rivalidade entre “a perna de cá e a de lá”.

Como foi pesquisar a topografia e hidrografia da região para o livro?

Um gatilho foi o movimento Rios e Ruas ter começado a falar dos rios subterrâneos de São Paulo. Pesquisei a hidrografia de ontem e hoje num mapa ótimo da Prefeitura, em camadas; falei com o Rios e Ruas e com o engenheiro da Prefeitura. Prestei atenção à topografia: como seria andar a pé? Observei vistas de montanhas e pelo Google. Para o clima e animais, usei o relato de José de Anchieta; também aproveitei uma matéria antiga da BBC Brasil com o botânico e paisagista Ricardo Cardim. Alternei pesquisa e invenção. 

A questão da canalização dos rios em São Paulo e suas consequências para a cidade são temas que você também aborda. Como você vê isso?

Houve um tempo em que os rios, abertos, foram uma questão de saúde pública. Só que estamos em outra volta: o clima está extremado, alterna inundações e secas, a garoa sumiu, a mancha urbana se impermeabilizou. Só plantando muito o solo absorve água e reduz as inundações. Precisamos de vegetação nativa em matas urbanas de bolso e até no paisagismo. E um ou outro trecho de córregos à superfície. É uma questão de conscientização.

Você acredita que a ocupação da cidade da forma como foi feita gerou uma cidade e uma sociedade instável?

As pessoas vivem em áreas ambientalmente inseguras, sujeitas a alagamentos ou deslizamentos. Com tudo isso, como dizer a alguém que passa três horas no transporte para que tenha uma hortinha ou cuide de uma árvore na calçada? Ou como sensibilizar candidatos e eleitores a tratarem do meio ambiente?

Tive a sensação distópica que o boom de construções na capital paulistana poderia causar uma soroca que fizesse ceder todo o pavimento de asfalto da cidade. Você concorda que há uma fragilidade na cidade?

Não estamos longe da distopia. Mas não sou engenheira das águas, como um dos meus personagens. Andam reclamando de nascentes sob prédios novos. Não sei como isso funciona, mas que potencialmente alguma água pode minar a terra e haver solapamento, sim, acho que pode. Temos buracos de rua já crônicos. São fechados, mas voltam a se abrir, cheios de água.

Em ambas as narrativas as personagens femininas têm total protagonismo. Como você descreve essas personagens tão importantes nas narrativas?

Iacy, minha preferida, cresce meio isolada e sem os limites que a sociedade impõe às mulheres. Daí sua força. Já Joana cresce com um buraco que parece nunca se preencher. Ela acha que é a ausência do pai. Cada jovem contracena com uma figura materna: Petra é a mãe de Joana e, Balbina, a madrinha de Iacy. Cada uma das quatro enfrenta, a seu modo, as dificuldades e a violência. Percebi que tinha histórias de quatro mulheres fortes, mas muito diferentes entre si.

Você também aborda a questão da mãe narcisista. Como você vê isso?

Petra era determinada, criativa, se jogava nos projetos e, por isso, não enxergava muito a filha. O não-ver a filha e estar envolvida nos próprios projetos é narcisismo puro. Acho que a perfeição que Petra exigia da filha era isso. O incrível é que consigo mesma Petra não agia assim. Se permitia errar. As pessoas são complexas. A personagem apareceu assim, contraditória.

Na narrativa ambientada no século XVII, eventos violentos acontecem com os personagens Fernão, Iacy, Rubens, Quiririm e a curandeira Balbina. Você considera que o país foi fundado sob o signo da violência?

O colonialismo é por definição violento: impõe uma cultura sobre a outra. No caso da escravidão é pior: impõe que um ser humano seja a propriedade de alguém. No Brasil, parece haver uma ampla rejeição às regras (sobretudo as civilizatórias). Assim, o forte se impõe e o submetido tenta se defender. Resta aos submetidos tentar enganar o poderoso ou, por sua vez, usar também da violência. Soroca reflete isso.

A questão da morte é muito presente em todo o livro, com momentos de realismo mágico, mostrando sensações e reflexões pós mortes. Como você vê isso?

Um dos gatilhos para escrever Soroca foi imaginar que se a gente sente a falta dos que já morreram, eles também devem sentir a nossa. Experimentei muito para achar uma forma de dar voz (ou pensamento) a esses mortos.

Achei muito poética a escolha do nome de Iacy pela parteira e curandeira Balbina para homenagear a lua cheia. Um nome que pode ser feminino ou masculino. Como você analisa a questão de gênero em Soroca?

Queria um nome que fosse tupi e comum de dois gêneros. Iacy (ou Jacy) foi um achado, desde a cena da lua cheia nascendo para os lados do Vale do Pacaembu. Educada como menino, a personagem foi espécie de experimento: como seria crescer sem os limites sociais de ser mulher?


                                                                                                                                                                       


Soroca

isbn: 978-65-6035-016-8
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 13x16,5cm
páginas: 320 páginas
papel polén 90g
ano de edição: 2024
edição: 1ª
 https://editoraurutau.com/titulo/soroca
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