ORLANDO PAROLINI, O “POETA MALDITO”, NA OBRA DE CARLOS REICHENBACH.
“O importante não é o que eu fiz, é aquilo que eu deixei de fazer, e aquilo que ainda está para ser feito". Orlando Parolini em “Sangue Corsário”.
- Categoria: Cinema
- Publicação: 03/01/2025 16:54
- Autor: Marcus Hemerly

Uma
figura exótica de olhar fixo, perdido e contemplativo, frequentemente agregava
aos filmes de Carlos Reichenbach, emprestando uma aura profética e
indiretamente ominosa aos densos e subjetivos enredos concebidos pelo saudoso
cineasta gaúcho radicado em São Paulo. Constantemente interpretando personagens
igualmente complexos e misteriosos, conhecemos o poeta, dramaturgo e ator
Orlando Parolini, (1936 -1991), eminente representante da contracultura e
desdobramentos da poesia Beatnik no Brasil.
Especialista
em cinema japonês, crítico e ator visceral, recebeu a alcunha de o poeta
maldito e “O Profeta da Galeria Metrópole”, ao passo que distribuía panfletos
de poesia profana aos transeuntes do viaduto do chá. Um dos aspectos
fascinantes dessa figura, repise-se, enigmática, é a escassez de dados
biográficos mais substanciais, bem como a acessibilidade à sua obra com teor
fortemente oral, pois não deixou publicações promovidas por grandes editoras,
havendo concebido as coletâneas poéticas “Poemas” (1957-1961), “Poemas do
pequeno assassino” (1963-1964), “O pântano (1964-1968)”, e “Cartas de
Babilônia” (1968-1972), as peças No campo teatral, escreveu duas peças,
“Divirta-se” e “O frango e a freira”, bem como o romance “Culus ridendus”
(1986).
O
finado cineasta Reichenbach é conhecido como um dos principais representantes
do cinema marginal vertente da sétima arte nacional com alto desenho
experimental e de viés autoral, com expoentes como Ozualdo Candeias João
callegaro e José mojica Marins. Discípulo de Luiz Sérgio Person de quem foi
aluno na faculdade de cinema da São Luiz, ‘Carlão”, como era conhecido na Boca
do Cinema paulistana, teve a percepção para escalar Parolini em papéis nos
quais sua veia poética arraigada ao existencialismo, ainda que de feições
concretas, poderia ser explorada em paralelo ao perfil dramático dos roteiros
nos quais era inserido.
Atuou
como o louco messiânico de Império do Desejo (1981); o professor idealista de
“Amor, palavra prostituta” (1982); além de ter instigado e indiretamente guiado
o peregrino Fausto (Ênio Gonçalves) na procura por seu refúgio em Miraceli,
no aclamado “Filme Demência” (1986). Acerca do histórico criativo entre os dois
realizadores, o estudioso de literatura comparada Fabiano Calixto, escreveu em
texto publicado na Revista Cult: “além de dirigir aquele que seria o primeiro
filme underground no Brasil, o Via sacra (1965), cuja fotografia foi feita pelo
grande cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) que, sobre a película de
Parolini, escreveu: “misturava imagens de um Cristo esfarrapado perambulando
pelas ruas do centro de São Paulo com cenas estarrecedoras de nudez frontal,
sexo em grupo e canibalismo. Parolini antecedeu Pasolini em sua ascese feita de
excessos”. O filme, entretanto, não existe mais, pois, Parolini, num acesso de
paranoia, em 1970, sob a ameaça de ter seu filme confiscado pela polícia
federal e de ser preso, torturado, morto, sabe-se lá, picotou todo o negativo,
fotograma por fotograma”,(https://revistacult.uol.com.br/home/noticias-de-outras-ilhas-fabiano-calixto/).
Robustecendo
o ideário utópico libertário que permeia a obra de “Carlão”, e, em na forma de
homenagem ao Profeta da Galeria Metrópole, existe o fascinante curta-metragem
de 1979, “Sangue Corsário”. No roteiro, os personagens de Parolini e Roberto
Miranda, dois amigos separados pelo tempo e os rumos da vida, se encontram no
centro de São Paulo, onde o bancário de vida segura e entregue à rotina,
rememora de modo saudoso e admirado o pioneirismo cultural (e modus vivendi) do
amigo, de olhos cerrados aos ditames sociais e às convenções. Enquanto caminham
por belas locações na Selva de Pedra, como a Praça Júlio Mesquita, Largo da
Memória e Largo Paissandú, o diálogo, na verdade, quase um monólogo, representa
o conflito e ruptura de gerações em meio ao cenário político e cultural dos
anos sessenta e setenta, panorama da obra poética de Parolini.
Decerto,
o próprio meio urbano catalisador de números sentimentos e tragédias, e que
encapsula vidas e dramas (erros?), também serviu de matéria-prima às
composições do autor, num reflexo entre ser, cidade, meio concreto e espaço
sentimental. Um ressuscitar e regurgitar do romantismo mórbido de Álvares de
Azevedo transposto e ampliado ao elemento funéreo de Augusto dos anjos,
perpassando de forma sensível os pontos mais sombrios que habitam a mente do
homem sensível.
O
final de “Sangue Corsário”, pessimista, antevê e entrevê a aquiescência às
normas protocolares de convivência que cerceiam sonhos, tendências e
aspirações, conscientes ou não. Ainda em tom epilogal, uma mensagem se protrai,
como se o diálogo instigasse o expectador ao questionamento: “vale a pena
ousar?”. A pergunta remanesce sem resposta.
ALGUNS
POEMAS DE ORLANDO PAROLINI extraídos do volume Azougue 10 anos (Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2004). (http://revistamododeusar.blogspot.com/2010/10/serie-sonda-nas-jazidas-orlando.html)
Descrição
da Praça da República para a amada que mora no interior
Orlando
Parolini
os
lagos de tão rasos
não
permitem afogamentos:
se
temos fomes
não
há que nos alimente
–
os peixes
vivem
(de
excrementos)
os
pombos não nos pertencem
roubá-los
será inútil por enquanto
e
que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?
sedentos
a
sede aplacaremos com coca-cola
no
bar mais próximo
algumas
pontes o contacto estabelecem
entre
o vazio e o vazio
sugerindo
paisagens que não vivemos
ao
meio-dia
se
debruçarmos sobre as ferragens
esperando
a volta para os estábulos de ar condicionado
nos
chamarão de pederastas
estátuas
há
que
olham para as árvores
contemplando
as estátuas
no
grande parque infantil
de
arame rodeado
crianças
são treinadas
como
cães de apartamento
a
beber nas horas certas
urinar
nos w.c.
sem
sujar o uniforme
na
parte mais baixa se repararmos
sem
muita preocupação
agências
de turismo aveludadas
casas
bancárias de velhas tradições
restaurantes
e cafés
lojas
de créditos
rodeiam
o que mais se salienta no local:
o
mictório público
moralmente
dividido
para
homens e senhoras
não
importa a condição
§
A
perdição
Orlando
Parolini
porque
estou arrependido
de
cinzas cobrirei a cabeça
os
pés lavarei com água benta carismal
com
cacos de telha a epiderme rasparei
porque
estou arrependido
a
boca encherei de pedregulhos
as
costas açoitarei
um
cilício na cintura o sexo prenderá
os
rins amortecendo
em
cruz abertos braços jejuarei
7
dias 7 noites
comendo
pão ázimo de judeus
gafanhotos
mel
porque
estou arrependido
conhecerei
a Av. São João
da
Cruz ou Evangelista não sei
e
na primeira praça pública me despirei
em
sinal de humilhação
porque
estou arrependido
vomitarei
nas portas das igrejas
nos
umbrais dos cemitérios defecarei
que
tudo é pó diz o Testamento
e
se quiserem saber por que estou arrependido
não
me perguntem.
–
ah, perdida geração,
o
último avião passou e nos esqueceram
na
plataforma nos deitamos
esperando
esperando
esperando
Acesso
ao curta-metragrem “Sangue Corsário”, disponível no You tube: https://www.youtube.com/watch?v=eh857N3VU_8
SOBRE O AUTOR
Marcus Hemerly, é
natural de Cachoeiro de Itapemirim/ES. Servidor do Poder Judiciário Estadual,
tendo formação em Direito, é autor das obras solo “Verso e Prosa: Excertos de
Acertos", e “Versos Anversos”, além de coautor em antologias poéticas e de
contos, participando de academias literárias. É colunista de cinema e
literatura, contribuindo com periódicos impressos e eletrônicos, articulista,
roteirista e pesquisador independente de cinema, precipuamente sobre os temas
“Cinema Marginal Brasileiro” e “Horror Italiano”.
Contatos:
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