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Hendy’a Rapykwere finaliza gravações e anuncia um marco para o cinema indígena LGBTQIAPN+

  • Categoria: Cinema
  • Publicação: 09/09/2025 15:26
  • Autor: Matêus reis
Curta-metragem foi gravado em Douradina (MS) e Dourados (MS) e tem elenco 100% indígena

Na última semana, encerraram-se as filmagens de Hendy’a Rapykwere, curta-metragem de aproximadamente 17 minutos que une documentário, ficção e realismo fantástico para dar corpo a uma história inédita no cinema brasileiro: a luta e a espiritualidade de jovens indígenas LGBTQIAPN+. Gravado em território de retomada na região de Douradina (MS) e na maior aldeia urbana do Brasil, Jaguapiru (Dourados - MS), o filme tem elenco 100% indígena e uma equipe técnica majoritariamente formada por pessoas negras, pardas e indígenas do interior do estado, reafirmando o compromisso com a representatividade e a inclusão em todas as etapas do processo criativo.

A narrativa acompanha Gualoy KG, jovem Guarani-Kaiowá de 20 anos que se tornou referência na luta pela diversidade sexual e de gênero em comunidades indígenas. Liderança do coletivo Juventude Indígena Diversidade Guarani/Kaiowá MS, Gualoy leva para a tela tanto suas vivências pessoais quanto as de outros jovens LGBTQIAPN+ indígenas, traduzindo em roteiro os desafios, a dor e a força de existir em territórios onde ainda ecoam violências coloniais e o peso de fundamentalismos religiosos.

Em meio a essa realidade, o curta faz emergir a figura de Tybyra do Maranhão, indígena Tupinambá executado brutalmente em 1614, considerado o primeiro assassinato de pessoa LGBTQIAPN+ das Américas. Condenado pelos colonizadores franceses por “sodomia”, Tybyra foi amarrado a um canhão e lançado ao mar — sua memória, por séculos silenciada, ressurge agora no cinema como símbolo de resistência e guia espiritual. Interpretada pela atriz trans indígena Andrya Kiga, do povo Bororo (MT), Tybyra aparece como presença mítica, trazendo ao protagonista e ao público a lembrança de que as lutas de hoje têm raízes profundas na história.

“Minha inspiração vem da cosmovisão indígena, dessa forma tão rica de enxergar o mundo em que o real, o mítico e o espiritual caminham juntos. Esse filme só existe porque é coletivo, porque o roteiro foi moldado pelas vivências trazidas pela comunidade. Eu entendo meu lugar como um facilitador, alguém que cria condições para que essas vozes ecoem com força”, afirma Marcus Teles, diretor e um dos roteiristas do curta.

Para Michele Kaiowá, produtora e roteirista, a obra é fruto de coragem e resistência: “Gravar dentro do território Guarani-Kaiowá foi um desafio, entre os medos e as violências que ainda enfrentamos, mas também uma afirmação de que precisamos mostrar ao mundo a luta de jovens indígenas LGBTQIAPN+. É emocionante saber que estamos registrando não apenas a dor, mas também a força, a espiritualidade e a esperança de um povo que resiste para existir”.

A experiência foi igualmente transformadora para Gualoy, que atua no filme e contribuiu com o roteiro. “Nunca pensei que fosse atuar. Venho da militância, mas essa atuação é uma forma de liberdade espiritual. A cena em que Tybyra entrega o colar foi a mais marcante, porque trouxe a lembrança da minha avó, a continuidade do caminho do meu avô, a reza que me sustenta. Esse filme é fortalecimento — da cultura, da convivência e da nossa espiritualidade. É um espelho para que jovens indígenas LGBTQIAPN+ se reconheçam e percebam que não estão sozinhos”.

A presença de Tybyra deu ao curta uma força ancestral. Andrya Kiga traduz essa dimensão em sua fala: “Tybyra tem a essência de um corpo livre dos padrões de gênero. Sua alma é liberdade, como o vento que atravessa tudo. Para mim, como mulher indígena trans, é um privilégio e uma conexão espiritual poder trazê-la à tela. É um corpo que foi apagado pela violência colonial, mas que agora retorna como guia, lembrando que resistimos para existir. Cada olhar de Tybyra é um chamado à luta, e também um abraço de esperança para quem ainda busca força para ser quem é”.

Em sua estrutura híbrida, Hendy’a Rapykwere cria uma narrativa em que a ficção se alimenta da realidade e a realidade se abre para o fantástico. A água, presente em cenas marcantes, simboliza tanto a dor quanto a cura, a passagem e a permanência. O colar entregue por Tybyra é mais que um adereço: é um pacto espiritual, um elo entre passado e futuro, tradição e diversidade.

Mais do que contar uma história, o filme abre caminho para outras. Ao levar para a tela a luta indígena LGBTQIAPN+, o curta se torna instrumento de afirmação identitária, mas também de denúncia, diálogo e transformação. “O audiovisual pode ser espelho e megafone. Para os povos indígenas, fortalece a identidade e reafirma memórias; para a sociedade em geral, é um chamado à escuta e ao respeito”, resume o diretor Marcus Teles.

Finalizadas as gravações, Hendy’a Rapykwere segue agora para montagem e finalização, com previsão de circular em festivais e mostras audiovisuais, além de debates em universidades públicas. Seu percurso será também o de fortalecer a representatividade no audiovisual sul-mato-grossense e nacional, mostrando que o cinema indígena LGBTQIAPN+ não é apenas necessário, mas urgente.