O EXISTENCIALISMO NA OBRA DE INGMAR BERGMAN
“Neste vazio dentro de mim nasceu algo que não compreendo, cujo nome não sei...” Através de um Espelho, 1961.
- Categoria: Cinema
- Publicação: 17/10/2025 21:03
- Autor: Marcus Hemerly

Sorvendo da fonte europeia
existencialista, as derivações daquela escola filosófica não passaram ao largo
das retratações cinematográficas. Aliás, todas as formas de produção artística
desenham as feições, ainda que inconscientes, de seus idealizadores, se não
aquilo que é concebido, o que é sentido. A imersão nas dicotomias e
incongruências que compõem a complexidade humana são rica matéria-prima para a articulação
da expressão individual. A luz dessa diegese, poder-se-ia desembaraçadamente citar a
filmografia do diretor sueco Ingmar Bergman, que paralelizou desde os
questionamentos metafísicos até as águas revoltosas que permeiam os sentimentos
mais animalescos do homem.
Deparamo-nos com o
jogo de xadrez com a morte, a partir de seu filme mais famoso, ‘O Sétimo Selo’
de 1957, até o encontro de sua personificação num simbolismo que será
recorrente em toda obra do diretor; a existência em sua forma mais substancial,
para, num segundo momento, amoldar a vida, essência, amalgamando a criação/origem
até a forma de interação com o meio circundante/evolução. Ora, o que é a
filosofia, senão uma eterna inserção de questionamentos sobre proposições tidas
como absolutas, ou mesmo, abstratas em sua natureza?
Ainda trilhando a
vereda investigativa quanto as formatações humanas em seus liames racionais e
sentimentais, é possível concluir que tais conceituações são indissociáveis
para o direcionamento inquisitivo existencial tratado na obra de Bergman. Não
raro, se escuta o conceito ‘crise existencial’ em atividades atreladas à vida
hodierna, e, de igual modo, quando relacionadas às representações fílmicas.
Personagens densos, introspectivos, insatisfeitos em sua inquietação não
aparente, e por fim, comumente rotulados sob a pecha de existencialistas.
Voltando olhar para seus primeiros trabalhos, nos quais identificamos as
emoções e pulsões de forma mais primitiva, como vingança, no caso de ‘A fonte
da donzela’, em seus roteiros ulteriores, é possível perceber que o trilhar, ou
talvez seria dizer, ‘brincar,’ com a inquietude do amadurecimento emotivo de
seus personagens é uma intenção recorrente.
Na chamada
trilogia do silêncio, somos apresentados a personagens que numa análise perfunctória
poderiam ser erroneamente classificados de superficiais. Contudo, nada mais
enganoso. Na produção ‘Através de um Espelho’, 1961, Karin,
a jovem retorna ao seio familiar após uma temporada em um hospital
psiquiátrico, e vivendo em uma ilha com seu solitário irmão, o marido (Max von
Sydow), ator recorrente na filmografia do diretor, e o pai, se desenha um deterioramento no
relacionamento daquele núcleo, quando a instabilidade de Karin ganha força, fazendo
com que os próprios conflitos de seus
pares, principalmente de seu pai, aflorem. Identificamos a fragilidade na
inteligência racional contraposta à emocional.
Em ‘Luz de Inverno’, 1963, o amor e suas
contradições são experimentados pelo pastor Tomas Ericsson, que sofre uma
intensa crise de fé quando relutantemente se apaixona pela professora Märta
Lundberg. Finalmente, em ‘O Silêncio’ de 1963, título mais polêmico e que
encerra a trilogia, conhecemos as irmãs, Ester e Anna, que viajam para um país
da Europa Central durante a guerra e levam com elas o filho de Anna, o garoto
Johan de 12 anos. Naquele espaço, a trama de desenvolve num hotel quase
inabitado, que atua perifericamente à próprias conscientizações de seus
tormentos, desejos e pretensões de exploração íntima. Temas/cenas como
autoerotismo feminino, sugestão de relacionamento incestuoso e desejo velado
pela morte, exsurgem de maneira palpável e desconfortante até mesmo ao
espectador.
Assim como a aplicação psicanalítica, o que se desvela num tom flagrante
nos roteiros, até mesmo na forma de estilo/conceito cunhados ao que se
convencionou chamar de ‘bergmaniano’, de feição adjetiva, é identificada
a partir de proposições. Estas, em uma primeira intenção, simples, mas que
estimulam a reflexão e incursão interior por meio de estímulos livres.
Conflitos familiares, sexuais, de relacionamento, culpa, entre outros, são
emoções basilares que descortinam os elementos mais caracterizadores do ser
humano. A partir dessa ideia, os vieses psicanalíticos permeiam todas as
concepções daquele recorte do cineasta, que recebeu o epíteto de pintor do
existencialismo. Descrevendo-o, o diretor francês Jean-Luc Godard ponderou: "O
cinema não é um ofício, é uma arte. Cinema não é um trabalho de equipe. O
diretor está só diante de uma página em branco. Para Bergman estar só é se
fazer perguntas; filmar é encontrar as respostas. Nada poderia ser mais
classicamente romântico".
Repise-se, tal como a própria metodologia psicanalítica de discurso e
autoconhecimento indutivo, títulos inesquecíveis como ‘Sonata de Outono’, e
‘Gritos e Sussurros’, são exemplos de diálogos fluidos que tocam o cotidiano e
roupagens travestidas de abordagens singelas, mas que em verdade, obscurecem
redemoinhos emocionais muito mais arraigados e merecedores de apreciação e
retratação. O que se faz de modo preciso e inquietante por Ingmar Bergman.
Talvez, um dos filmes mais característicos de tal ênfase existencial na
cronologia de sua cinematografia é apontada em ‘Persona’ – título sugestivo –
no qual a dualidade humana e os enigmas da mente são despidos de forma
engenhosamente orquestrada.
Decerto, a análise pontual de cada filme citado, bem como acerca dos
pontos sobre os quais lastreiam-se o norte psicológico da carreira do diretor,
são suficientes a robustecer teses acadêmicas, mas, de igual forma, neste
espaço mais sintético, estimular a descoberta aos leitores e apreciadores das
imagens – e questionamentos – em movimento. Se no Brasil, o diretor do cinema marginal
Carlos Reichembach se autodenominava o último utopista, Bergman, por sua vez,
pode ser identificado com o grande existencialista, intencionalmente ou não. A
indagação ecoa à espera de resposta.
MINIBIOGRAFIA
Marcus
Hemerly, é natural de Cachoeiro de Itapemirim/ES, formado em Direito, é
servidor público do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Dr.h.c em
literatura. Autor das obras solo “Verso e Prosa: Excertos de Acertos",
"Versos Anversos" e coautor em antologias poéticas e de contos. É
colunista de cinema, contribuindo para sites e jornais eletrônicos. Pesquisador
independente de cinema, precipuamente sobre os temas “Cinema Marginal
Brasileiro” e “Horror Italiano”.
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