O SONHO VOOU: UM TEATRO DE ESPELHOS QUEBRADOS
- Categoria: Teatro
- Publicação: 18/02/2025 21:52
- Autor: Marli Durant

O palco está mergulhado em sombras. Um personagem solitário avança, carregando não apenas seu corpo, mas séculos de palavras acumuladas. Ele fala, mas sua voz não é só dele. Ele é Hamlet, mas também Raskólnikov. Ele traz no olhar um poema de Yehuda Amichai e nos gestos a fragmentação brutal de Heiner Müller. Não há tempo linear, não há narrativa fechada. Apenas ruínas de histórias entrelaçadas, um emaranhado de vozes que tentam, em vão, reconstruir um todo.
O Sonho Voou não é apenas uma peça. É um sismógrafo teatral, captando os tremores do tempo e os abalos de uma identidade dissolvida. No palco, Shakespeare dialoga com Müller, Dostoiévski sussurra para Amichai, enquanto Celso Frateschi, como um tecelão meticuloso, entrelaça esses fios para compor um mosaico instável. Mas o que permanece quando os sonhos voam? O que resta
quando a história é um quebra-cabeça sem encaixe definitivo?
O DESEJO QUE NUNCA SE COMPLETA
Freud nos ensinou que o desejo nunca se realiza por completo. Ele é um motor eterno, condenado a buscar incessantemente um objeto que escapa assim que se torna acessível. O Sonho Voou é um teatro dessa pulsão infinita: os personagens perseguem fragmentos de um discurso maior, mas nunca o encontram plenamente.
Como em Dostoiévski, há uma inquietação psíquica no ar. Cada gesto, cada palavra parece
carregada de uma culpa não nomeada, de uma busca sem destino. Eles se movem como se
estivessem dentro de um monólogo interior, arrastando diálogos que nunca se resolvem, circulando entre frases soltas e ecos de um passado que se recusa a ser esquecido.
➡ Cena emblemática: Um personagem fala, mas sua fala é interrompida por outro que completa a frase de maneira inesperada. A frase não pertence a ninguém, é como um pensamento coletivo.
Aqui, a peça captura a essência da psicanálise: o sujeito nunca é totalmente dono de sua fala. Ele é habitado por discursos anteriores, por fantasmas de outros tempos.
O TEATRO COMO RUÍNA: MÜLLER E A FRAGMENTAÇÃO
Heiner Müller dizia que o teatro do futuro seria feito de escombros. Em O Sonho Voou, essa visão se concretiza na estrutura narrativa e na cenografia. Não há começo, meio e fim definidos. A peça se constrói por meio de justaposições, cortes bruscos, momentos que se interrompem antes de se completarem.
O cenário, assinado por Sylvia Moreira, reflete esse estado de colapso: não há um espaço contínuo, mas sim um palco onde o passado e o presente se sobrepõem. Os figurinos seguem essa lógica –
personagens que parecem fora de sua época, como se tivessem sido arrancados de um tempo distante e jogados em um limbo atemporal.
➡ Metáfora visual: O palco é um arquivo onde memórias incongruentes são empilhadas sem
ordem aparente. O público se torna um arqueólogo, tentando recompor o que foi perdido.
A GUERRA ENTRE POESIA E HISTÓRIA: YEHUDA AMICHAI
Se Müller e Dostoiévski trazem o peso da história e da psicologia, Yehuda Amichai introduz o lirismo, a tentativa de transformar a dor em palavra. Seus poemas falam de guerra e amor, de memórias que sobrevivem mesmo quando tudo desmorona.
Em O Sonho Voou, a presença de Amichai se manifesta nos instantes de pausa. Entre os discursos intensos e os dilemas existenciais, há momentos em que o tempo desacelera. A peça permite que a beleza surja nos detalhes: uma mão que toca a luz, uma palavra que flutua no silêncio.
➡ Cena que sintetiza Amichai: Enquanto os personagens discutem questões existenciais, um deles simplesmente para, dobra um pedaço de papel e o guarda no bolso. A guerra pode continuar, mas há sempre algo pequeno que resiste ao caos.
O TEATRO COMO LABIRINTO
Shakespeare paira sobre a peça como um espectro, não apenas em citações diretas, mas na própria estrutura cênica. Assim como em Hamlet ou Rei Lear, o teatro dentro do teatro é um artifício recorrente.
Aqui, os personagens parecem cientes de que estão representando algo maior do que suas próprias vidas. Eles não apenas interpretam, mas comentam a própria representação, como se questionassem o sentido de suas falas. Isso ressoa com a visão shakespeariana da vida como um grande palco, onde todos desempenhamos papéis efêmeros.
➡ Cena que resume esse jogo metateatral: Um personagem está prestes a morrer em cena, mas antes de cair diz ao público: “O que vocês esperavam? A realidade?” – e sai andando, ileso, desmontando a ilusão teatral.
CONEXÕES COM O PRESENTE: UM ESPETÁCULO PÓS-MODERNO
O Sonho Voou não é apenas um diálogo com o passado, mas um espelho do presente. A
fragmentação da peça ecoa a fragmentação da sociedade contemporânea. Vivemos na era da
velocidade, das informações fragmentadas, da identidade líquida descrita por Zygmunt Bauman.
O que vemos no palco é um reflexo de nossas próprias incertezas:
• Como reconstruir uma narrativa em meio ao caos?
• O que nos define quando tudo se desmancha rapidamente?
• Somos indivíduos ou apenas um eco de discursos passados?
➡ Cena que reflete essa angústia contemporânea: Um personagem tenta contar sua história, mas é constantemente interrompido por ruídos externos – vozes, sirenes, notificações sonoras. No final, ele desiste, pois percebe que sua voz se dissolve no barulho do mundo.
O QUE SOBRA QUANDO O SONHO VOA?
No final de O Sonho Voou, não há uma conclusão definitiva. Porque a peça não quer oferecer respostas, mas sim ampliar as perguntas.
Celso Frateschi, com sua direção precisa, constrói um espetáculo que não se entrega facilmente ao espectador. Como um quebra-cabeça incompleto, a peça exige que cada um preencha os espaços vazios com sua própria interpretação.
À música desempenha um papel fundamental na peça O Sonho Voou. A trilha sonora original foi composta por Rodrigo Florentino, enquanto Alexandre Rosa contribuiu com música original
executada ao vivo durante as apresentações. Essa combinação de composições originais e
performances ao vivo enriquece a atmosfera da peça, intensificando as emoções e complementando a narrativa fragmentada. A música ao vivo, em particular, adiciona uma camada de imediatismo e autenticidade, permitindo uma interação dinâmica entre os músicos e os atores no palco. Essa
abordagem musical contribui significativamente para a experiência imersiva do público, reforçando os temas e as emoções exploradas ao longo da performance.
Aqui, os sonhos voam, mas deixam rastros. São como fragmentos de um espelho estilhaçado. Cada um enxerga algo diferente em seus reflexos, e talvez seja exatamente essa a força do teatro: não impor significados, mas permitir que cada espectador descubra o seu.
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