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COLUNA DO SILVIO - O BOI NA SALA DOS CRISTAIS

(da série Textículos e Pequenas Fábulas)
  • Categoria: Humor
  • Publicação: 24/12/2024 00:29
  • Autor: Silvio Cosenza

Onze e pouco da manhã e a criadagem já se acotovelava na cozinha. Almoçavam cedo para já de bucho cheio servir a madame, uma vez que esta adorava se demorar à longa mesa do aposento de jantar. Não era incomum servir-se do licor pouco antes de escurecer.

No meio do burburinho que eram aquelas apressadas refeições ouve-se num estilhaçar de vidros noutra dependência da mansão. “É na sala dos cristais”, apontou a aflita camareira, ao que a governanta emendou em tom inquisitivo: “aposto como deixaram o boi entrar de novo”. “Eu não fui”, protestou o ressabiado mordomo, já tirando o seu da reta, farto que estava de levar culpa por tudo.

 Após novo estrondo a cozinheira não se conteve, e de colher de pau em riste desafiou: “só quero ver quem vai ser macho para tirá-lo de lá”, o que automaticamente empurrava o problema para os empregados do sexo masculino. O jardineiro, em completo mutismo nem tirou os olhos do prato, mas Ricardo, o motorista, astuto como cobra peçonhenta veio com esta: “ninguém, ora bolas. A madame é a primeira a dizer que não é para traumatizar o bichinho” .

O silêncio que seguiu não era mais que a sublimação das perguntas na mente de todos: quando a madame teria dito semelhante coisa e como apenas o Ricardão sabia? Foi a ingênua faxineira que, sem querer, acabou por desviar o assunto, aliviando assim a barra do sujeito: “acho melhor alguém fazer alguma coisa, porque quem vai ficar com o mico de limpar a bagunça sou eu”.

O mordomo, vendo outra oportunidade de se esquivar, logo acusou: “vai ver foi você mesma que ao fazer faxina largou a porta aberta”. Aí sobreveio aquele pega para capar com uns apontando o dedo para outros desenfreadamente. No meio da gritaria, justamente a copeira, que quase não falava, levantou a questão: “mas peraí, onde guardam o boi, afinal de contas”?

Nesse momento caiu a ficha, primeiro do disparate que era criar um boi numa propriedade urbana, segundo que ninguém ali sabia onde o animal ficava. Então começaram a se dar conta que nenhum deles já o tinha visto. Viam a balbúrdia que ele deixava: a cozinha em petição de miséria, o salão de visitas de pernas para o ar, com direito a vinho caro entornado pelo tapete branco, mas de boi, nem o mugido. Talvez os contratados da manutenção – um tipo de lumpemproletariado da residência – soubessem de algo, mas duas coisas não eram avistadas jamais: esse boi e o patrão.

Sem outro remédio, a resoluta governanta decidiu por todos que era melhor espiar a ainda ruidosa sala dos cristais. Para lá se dirigiram na ponta dos pés e após alguma exitação abriram a porta de mansinho, se agrupando sob seu batente apenas para compartilhar a estarrecedora visão.

Um senhor – que só poderia ser o patrão – de quatro, em trajes sumários e charuto na boca, a cabecear cristais e prataria como se chifres tivesse. No que se percebeu observado entrou a vociferar aos serviçais: “a madame não deu ordem para não deixar o boi entrar em casa, seus incompetentes”

Por Silvio Cosenza (Silvio também ficou estarrecido ao saber do fato)