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A IMAGÉTICA FÍLMICA DE OZUALDO CANDEIAS

“Cinema, enxergar a alma de quem o faz...”Carlos Reichenbach
  • Categoria: Cinema
  • Publicação: 16/10/2024 21:10
  • Autor: Marcus Hemerly

A IMAGÉTICA FÍLMICA DE OZUALDO CANDEIAS “Cinema, enxergar a alma de quem o faz...”Carlos Reichenbach Cediço que a fotografia é a tônica da chamada sétima arte. A partir da invenção do cinetoscópio até a viabilização de captação e transmissão mais sofisticada de imagens, a movimentação das formas amolda-se a uma das mais populares expressões artísticas. Idealizado originalmente de forma rudimentar com o aprimorado do invento pelos irmãos Auguste e Louis Lumière e a primeira transmissão coletiva em 22 de março de 1895, delineou-se, ainda que de forma primitiva, os contornos da concepção atual do cinema; o filme, ‘La Sortie de L'usine Lumière à Lyon’ (A saída da Fábrica Lumière em Lyon), deflagra o vindouro ritual de agrupamento para apreciação cinematográfica. A partir de tal premissa, imperioso atentar à definição do aludido “primitivismo” e suas derivações analíticas, seja a partir de uma definição de estilo ou um epíteto desabonador. No caso de Ozualdo Ribeiro Candeias, essa qualidade revestiu-se de tom imersivo criativo.

Nascido provavelmente no ano de 1918, inexiste informação precisa consoante o próprio cineasta voluntariou em diversas entrevistas, foi registrado 1922, em Cajobi, cidade paulista da região de São José do Rio Preto. De oficial da aeronáutica, foi caminhoneiro, e, posteriormente, diretor que se destacou de maneira peculiar no cânone nacional, exsurgindo como figura emblemática, de forma ainda mais relevante ao nicho paulista. Possivelmente, a partir de “andanças” em peregrinação pessoal e profissional, amealhou parte da inspiração a produções de forte viés social que amolda sua filmografia. Se de um lado, a crítica à problemática econômica, política e social era visitada pelo cinema novo, flagrantemente rotulado como elitizado sob o ponto de vista intelectual, tais vertentes foram igualmente exploradas no cinema marginal de Candeias e seus contemporâneos.
Mesmo atuando na chamada Boca do Lixo ou Boca do Cinema, polo de produção na cidade de São Paulo nos anos 60 a 80 localizado na região central da capital, não se deve confundir o dito cinema marginal com aquele rotulado de “cinema da boca”. Não que tal comparação apresente feições pejorativas. Ao revés, grande parte dos títulos lançados no país, à época, foram ali realizados. Decerto, as produções de teor mais apelativo e sensual da Rua do Trimpho não cerraram os olhos ao talento artístico, menos comercial, das idealizações de Candeias. Diante de sua criatividade marcante e extrema versatilidade, o ator e cineasta Adriano Stuart, em depoimento ao Documentário ‘Boca do Lixo: A Bollywood Brasileira’, de Daniel Camargo (2011), asseverou que numa conversa com o diretor, qualquer pessoa poderia assumir sua formação acadêmica na área do colóquio, a respeito da qual dissertaria com autoridade, dada a facilidade com que gravitava em torno dos mais diversos temas.

Essa peculiaridade é marcante nos roteiros de roupagem extremamente nacional, que replicaram nas terras tupiniquins os Bang Bang Hollywoodianos ou os westerns spaghetti, (aqui, rotulados de Bang Bang Feijoada) a exemplo de ‘Meu Nome é Tonho’, sem destoar, repise-se, da brasilidade e pronunciados desdobramentos experimentais, inclusive, numa adaptação muda de Hamlet, (A Herança, de 1970), inserida no universo rural. O tom harmônico e atento às mazelas do campo e suburbanas, retratando o êxodo e consequentes problemáticas advindas, foram tratadas de forma densa em “Zézero” e na icônica produção “A Margem”, que encena a vida (ou sobrevivência) nos entornos do rio Tietê. A migração desordenada, que contribuiu ao crescimento das comunidades periféricas, disputas fundiárias, entre outras tragédias humanos e sociais, são aspectos problematizados em olhar sensível e visceral, transgredindo “regras” do storytelling industrial e subvertendo-as numa ótica, e nesse ponto, atentemo-nos, não primária, mas primitivista, ao desenhar os contornos de um cinema da realidade com pronunciada estilística documental.
A despeito de Candeias renegar o título de cineasta marginal, e, ainda que do ponto de vista histórico comparativo seja possível erigir questionamentos quanto a sua inserção/deflagração no referido movimento underground ou udigrudi paulista, os traços marcantes daquilo que está “à margem”, inclusive o título de seu filme mais famoso, contextualizam a imagem da miséria e conflitos como chave de expressão. Essa característica explorada por vários veteranos da “Boca”, como o lendário José Mojica Marins, que produzia e até mesmo se estimulava com a falta de recursos, para Candeias, ganhava contorno proposital, transpondo à tela, sem retoques ou floreios, a realidade nua e crua.
Sua crítica? Ao governo, à sociedade, ao próprios infligidos e afligidos, em ótica pessoal, insurgente, e que viaja pelo contexto histórico político nacional; entre o rotulado “milagre econômico”, o ápice da repressão após a instituição do AI-5 até a abertura política e paralelo enfraquecimento do mercado cinematográfico nacional no final dos anos 80 e 90. Se, de um lado, compara-se o desdobramento cinema novista à Nouvelle Vague, o olhar de Candeias, assim como os demais diretores marginais, pode ser equiparado ao neorrealismo, mormente diante da mencionada formatação documental e a utilização de atores não profissionais, valorizando o cotejo de tomadas e ângulos inventivos a longas sequências que dialogam com o próprio personagem.

Assim como a definição expressionista, o poder da imagem é valorizado de forma enlevada no aspecto de desvelar simbólico ou explícito; da irascibilidade urbana à precariedade de recursos na faina e vivência campesina. Em sua brilhante tese de doutorado, intitulada ‘Ozualdo Candeias na Boca do Lixo: A Estética da precariedade no cinema Paulista’, (Fapesp, 2012, pag. 187), Ângela Aparecida Teles disserta:

“O cinema de Candeias não tem como proposta a fruição descomprometida. Buscando realizar um cinema com dimensões sociais, políticas e culturais, produziu filmes mesclando a narrativa ficcional e a documentária nos formatos curta, média e longa-metragem; em películas 16 mm, 35 mm e em VHS. Nessa construção da ficção cinematográfica acompanham-se os cruzamentos com a fotografia, o jornal, a oralidade caipira e o diálogo com o cinema. Essas práticas sociais da linguagem trabalhadas e ressignificadas nos filmes de Candeias permitem interpretar mudanças socioculturais daquele contexto, décadas de 1960 a 1980, constituídas numa estética que tem como leit- motiv a mobilidade e a precariedade experimentadas pelos caipiras pobres no campo e na cidade. Tal processo histórico não diz respeito apenas a questões econômicas ou de mudança geográfica, mas trata do deslocamento cultural, do viver na fronteira, em um processo agonístico de hibridação cultural que permeia a busca por novos territórios e significados para a existência”

Após comprar uma câmera 16 mm Keystone, instrumento que o habilitou a compor filmes caseiros, aprendeu a técnica cinematográfica de forma autodidata, fazendo com que se iniciasse na realização de documentários e curtas, como “Tambaú”, e “Cidade dos Milagres”, época em que frequenta o Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Atuando como cinegrafista, produz cinerreportagens e filmes institucionais encomendados para o governo do estado de São Paulo, enquanto, concomitantemente à sofisticação de sua visão criativa, se engaja com os realizadores da Boca, amoldando seu impulsionamento mais forte na vertente da ficção.

Aliás, sua multitude funcional é elencada no site IMDB, (Internet Movie Data Base), tendo em vista que Candeias teria exercido as funções de diretor, roteirista, produtor, ator, diretor de fotografia, cinegrafista, editor, diretor e gerente de produção, desenhista de cenários figurino, diretor de segunda unidade e fotógrafo de cena. Já foi escrito que os artistas brasileiros, os quais digladiam-se com as carências rotineiras, usam a falta de recursos como elemento de motivação e composição de criação, e, a partir dessa visão, compõe-se uma das principais característica da marginalia fílmica nacional. Ora, como de sabença, a música detinha a paralela Tropicália.
Rotulado de sisudo por alguns, até mesmo ríspido por outros, o amor e sensibilidade pelo cinema são indissociáveis da própria história do realizador. Os vetores imagéticos dos filmes de Candeias, pode-se dizer, são movidos por sua história pretérita como cinejornalista, viés que nunca abandonaria, sendo pertinente lembrar dos famosos curtas e média-metragens, “Uma Rua Chamada Triumpho” e “Festa na Boca” de 1972, pelos quais “passeia” apresentando os protagonistas da locomotiva que era o cinema paulista da época, convivendo em harmonia com a zona de meretrício e criminalidade na região. O crítico de cinema Salvyano de Cavalcanti Paiva, já escreveu:
“Candeias é cineasta intuitivo, original, com raro e forte senso de imagem. A tipologia que cria é do mais absoluto realismo: seu hábito de filmar, a falta de recursos econômicos, levou-o a uma espécie de marginalismo no cinema nacional, pois não usa rebatedor, não usa maquiagem nos atores, prefere trabalhar com gente sem experiências profissionais, enfim, faz filme sem concessão ao bom tempo da época.

À sombra dessa ideia, tendo por norte que as produções idealizadas no polo da Rua do Triumpho podem ser, num primeiro momento, identificadas como um fenômeno ao reverso de um movimento propriamente dito, o cinema marginal ainda que caminhasse não de modo excludente ao cinema novo, teve, renove-se, seus próprios traços marcantes, cujos nomes indissociáveis são o próprio Candeias, Rogério Sganzerla, de ‘O Bandido da luz Vermelha’, e Carlos Reichenbach. Em análise linear da evolução histórica das produções brasileiras entre os anos sessenta e setenta, quando o ingresso de cinema se igualava ao preço de uma passagem de metrô e ônibus, verifica-se como admirável a possibilidade quase instintiva de sobrevivência dos títulos menos palatáveis ao grande público, de modo quase amalgamado à dita (e erroneamente tachada) pornochanchada, que arregimentava substancial público às salas de cinema.

Essa impressão e expressão, é explicada, talvez, pela quase compulsiva retratação e documentação da degradação humana levada a efeito pelo vasto acervo fotográfico atribuído a Candeias, pontualmente, durante suas viagens pela América do Sul, ou pelos registros do submundo na região central de São Paulo. A dura vida das profissionais do sexo, no âmbito urbano ou rural, do deficiente, do iletrado ingênuo e obliterado pela epifania religiosa, instintos primitivos em meio a situações extremas, além das fontes sociológicas do êxodo foram tópicos que protagonizaram sua preocupação artística. Na icônica obra sobre a relevância do diretor naquele universo, Fábia Raddi Uchôa, (Ozualdo Candeias e o Cinema de Sua Época (1967-83) – Perambulação, Silêncio e Erotismo. Alameda. 2019. pag.187, consigna.

“Ozualdo Candeias participou de diversas produções da Boca do Lixo, como ator, produtor, roteirista, diretor de fotografia e fotógrafo de cena, estabelecendo muitos contatos e se tornando uma presença frequente na região. Paralelamente a tais trabalhos, de forma constante e rotineira, realizou um amplo trabalho fotográfico sobre a Boca do Lixo, enfatizando a vida cotidiana, os habitantes, as prostitutas, a arquitetura do bairro da Luz, bem como os trabalha- dores da indústria cinematográfica. A proximidade era tão grande que, durante os últimos anos de sua vida, o cineasta morou em um apartamento na Av. Rio Branco. Sua peregrinação diária por alguns bares das redondezas tornaram-no uma figura quase onipresente. Como profissional do cinema, na Boca do Lixo dos anos 1970-80, participou da realização de comédias eróticas e filmes de sexo explícito. Ao longo deste período, acompanhou as transformações sofridas pelo cinema erótico paulista, em termos de gênero e de produção.

Trata-se de um cinema esmerado, não subjugado às amarras do vendável e da pretensão puramente industrial, preocupação importante na época em que as produtoras privadas não caminhavam de mãos dadas com a extinta Embrafilme, após a falência dos estúdios Vera Cruz e Maristela. Recentemente, polos culturais tem realizado mostras e homenagens ao cineasta, que, felizmente, pode receber algumas ainda em vida. Contudo, seus filmes remontam a um período de cinema artesanal, que nas palavras de David Cardoso, importante nome dos anos setenta, não se faz mais. Em tom epilogal, o choque imagético na retratação que a partir de uma primeira mirada poderia desdobrar algo simplório, em verdade, choca, dentro de sua esfera incisiva e primitiva. Um clamor por atenção a deficiências sociais e econômicas de construção histórica, que na maioria das vezes, conscientemente é negligenciada. Afinal, se a imagem produz incômodo, fecha-se a janela.

Cadeias fez o contrário.